Há palavras que carregam dentro de si o peso do tempo — e "caráter", de origem grega, é uma delas. Na origem, Grécia antiga, a palavra não tinha nada de abstrato. Era pedra e ferro: "charaktér", o cinzel do escultor, ponta afiada usada para gravar na matéria bruta uma marca indelével; um gesto definitivo — como se, ao riscar a pedra, o homem também riscasse o destino.
Com o ar dos séculos, o caráter virou metáfora e a marca, antes literal, ou a representar aquilo que distingue um ser dos demais — não a burocrática, mas algo mais profundo, íntimo, quase invisível: a essência do indivíduo, seu traço mais autêntico, sua alma desenhada em linhas.
Hoje, "caráter" tornou-se palavra ambígua, espécie de camaleão semântico. Pode ser a letra que se digita num teclado, um símbolo tipográfico, ou o conjunto de princípios que molda a conduta de alguém. Mas, sobretudo, ainda é — ou deveria ser — aquilo que define quem somos quando ninguém está olhando. Um traço permanente, como um selo queimado na pele da alma.
Nesse sentido, "caráter" se torna uma bela sinédoque — figura de linguagem em que uma parte diz pelo todo. O caráter é a parte que revela o inteiro de um ser humano. É o detalhe que entrega o enredo completo.
No entanto, nesta era de disfarces e máscaras bem talhadas, o "caráter" tem se esvaziado de sua nobreza original. Com desconcertante frequência, encontramos a palavra acompanhada de um prefixo sombrio: "mau". O "mau-caráter" — essa figura recorrente e cada vez menos caricata — tornou-se personagem habitual do noticiário, do ambiente de trabalho, da política, dos corredores do poder... e até da esquina mais próxima.
O canalha moderno veste diferentes peles e trajes. Mas, se observarmos com certa atenção, há traços típicos que o denunciam. O mais evidente? Claro, é a desonestidade. Para eles, mentir é como respirar: uma necessidade vital. Trapaceiam com naturalidade e enganam com cinismo, sempre em busca de alguma vantagem escusa, de preferência à custa dos outros. São mestres na arte da manipulação: velhacos, envolventes, perigosamente carismáticos. Fazem-se de benevolentes, mas cultivam o comportamento parasitário com orgulho. Vivem às custas e sombras dos esforços alheios — e, absolutamente, não sentem vergonha disso.
Um desonesto reconhece e ira outro da mesma laia. Pasmem, não faltam tolos aplaudindo seus feitos com entusiasmo bovino.
Quando contrariados, revelam-se agressivos, hostis e arrogantes. A voz se eleva, o dedo aponta para todos os lados, mas jamais em direção ao espelho. Nunca erram, nunca falham — ou, ao menos, nunca assumem. Terceirizam suas culpas com desfaçatez: a responsabilidade, afinal, é sempre do outro. Do inimigo, do aliado, do ado, do acaso. E, com lábia melosa, diluem a verdade em versões ridículas da realidade.
Tal comportamento, infelizmente, não é raro ou tampouco transitório. Esses indivíduos desenvolvem uma espécie de couraça moral: tornam-se imunes ao remorso, resistentes ao arrependimento, impermeáveis à vergonha na cara. Não importa quantas pontes queimem, quantos laços destruam, quantas vidas afetem — seguem em frente, certos de que são vítimas injustiçadas e mártires incompreendidos.
No fundo, são sociopatas perfeitos e acabados. Vagam entre nós, mas não vivem conosco: ignoram sentimentos, desprezam direitos e são maus por natureza. Por onde am, deixam rastros de desconfiança, decepção e conflito.
Mas o tempo, sempre ele, tem o hábito de cobrar suas dívidas. Até que um dia a conta chega. O mau-caráter, outrora bajulado e temido, começa a perder espaço, respeito, credibilidade. Vira uma figura isolada, temida sim, mas também evitada. Seus aplausos agora vêm de claques contratadas. Sua aparição pública exige logística, segurança – às vezes, sanduiches de mortadela também.
Quando o malandro decadente é figura conhecida e frequenta noticiários, não pode sequer sair à rua, muito menos pegar um avião. O aeroporto torna-se um inferno para ele, que naturalmente a a usar aeronaves especiais - mais uma vez às custas dos contribuintes.
Porém, é importante lembrar que nem todo canalha nasce assim. Muitos são forjados em lares desestruturados, criados à sombra de maus exemplos, privados de limites e amor verdadeiro. A falta de freios morais, somada a ambientes tóxicos, planta a semente. Mas é a escolha consciente que faz crescer a árvore do caráter — ou de sua ausência.
Assim vaga o destino do mau-caráter: ora glorioso, às vezes infame. Mas, podem apostar, seu desfecho é invariavelmente trágico. Pois, no final, a máscara sempre cai — e o cinzel invisível da verdade grava, com crueldade quase poética, aquilo que ele ou a vida tentando esconder.
Para encerrar deixo uma citação bíblica: “Suas obras não lhes permitem retornar a Deus, pois o espírito da prostituição está entre eles, e porque não conhecem o Eterno.” (Oseias, 5,4 ).