“A história é um assombro ingovernável”, escreveu Affonso Romano de Sant’Anna em um poema. Affonso Romano de Sant’Anna morreu nessa semana, pouco depois da morte de sua companheira, a também escritora Marina Colasanti. E isto é digno de nota, caro leitor/a: na semana em que o Brasil ganhou seu primeiro prêmio Oscar pelo filme “Ainda estou aqui”, de Walter Salles (baseado no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva), morre o poeta de “Que país é este?”, livro icônico de 1980 e que marcou a literatura e a cultura brasileira em um momento em que, com caminhos e descaminhos, se iniciava a década da redemocratização do país.
Aqui, trago três de seus poemas – o primeiro, um excerto do próprio “Que país é este?”:
“Sei que há outras pátrias. Mas
mato o touro nesta Espanha,
planto o lodo neste Nilo,
caço o almoço nesta Zâmbia,
me batizo neste Ganges,
vivo eterno em meu Nepal.
esta é a rua em que brinquei,
a bola de meia que chutei,
a cabra-cega que encontrei,
o a-anel que reei,
a carniça que pulei.
este é o país que pude
que me deram
e ao que me dei,
e é possível que por ele, imerecido,
-ainda me morrerei.”
“Além de mim”, de 1981:
“Não é culpa minha
se não estou aparelhado
para entender certos conceitos
e sinais.
Conheço o ódio, o amor, a fome
a ingratidão e a esperança.
(Deus, a eternidade, o átomo e a bactéria
me excedem.)
o que não significa
que os ignore
Ao contrário:
por não compreendê-los
finjo estar calmo - e desespero”
E este, pungente, de seu último livro, publicado em 2017:
“Nada mais banal que dizer:
-O Sol se põe sobre o horizonte.
São 7h30 da tarde
Quase noite, é verão.
Terei um minuto de contemplação
Até que a luz
Desapareça uma vez mais.”